Em 2025, mais de R$ 60 bilhões em emendas parlamentares vão circular sem licitação, sem convênio e, em muitos casos, sem fiscalização. É mais do que o orçamento de ministérios inteiros, como Ciência e Tecnologia, Agricultura e Integração Regional, somados. Boa parte desses recursos será transferida por meio das chamadas emendas de transferência especial — as emendas Pix — modalidade que vem permitindo repasse direto para estados e municípios, sem a exigência padronizada de projeto técnico ou detalhamento prévio. A pergunta é inevitável: quem está de olho nesse dinheiro?
Ao acessar o Transferegov, plataforma oficial do governo para operacionalizar essas transferências, constata-se uma limitação considerável de transparência e funcionalidade. A ferramenta, gerida pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, reúne dados sobre a execução de emendas parlamentares, mas mantém falhas significativas de padronização e detalhamento, dificultando o acompanhamento por parte da sociedade e dos órgãos de controle.
Essa constatação não é recente. Em 15 de março de 2023, o Tribunal de Contas da União (TCU), por meio do Acórdão nº 518/2023-Plenário, manifestou preocupação com a baixa rastreabilidade das transferências especiais. O tribunal alertou que a ausência de dados organizados e completos inviabiliza a fiscalização efetiva e compromete o controle social sobre a aplicação dos recursos. Passados mais de dois anos, os principais gargalos apontados seguem sem correção efetiva.
O sistema permite o uso de descrições genéricas, como “infraestrutura urbana” ou “despesas diversas”, sem a necessidade de apresentação detalhada de justificativas técnicas.
Em resposta, o governo federal publicou, em 23 de abril de 2025, a Portaria Conjunta MPO/MF/MGI/SRI-PR nº 2, que estabeleceu novas exigências para o preenchimento e detalhamento das propostas de transferências especiais. Na prática, porém, o cumprimento das exigências ainda depende da capacidade técnica dos entes recebedores e da atuação dos órgãos de controle na fiscalização da aplicação dos recursos.
Modelo atual dilui responsabilidades e favorece a omissão
A responsabilidade pelo preenchimento dos dados recai sobre os parlamentares e seus gabinetes. Já a fiscalização dos repasses, segundo o próprio TCU, limita-se à verificação das condicionantes legais para o repasse. A fiscalização da execução após o envio do recurso foi atribuída aos Tribunais de Contas dos Estados (TCEs) e Municípios (TCMs).
Na prática, a atual repartição de competências entre os órgãos de controle tem gerado lacunas na fiscalização. Diversos tribunais de contas estaduais e municipais enfrentam limitações estruturais, como escassez de pessoal técnico qualificado e restrições orçamentárias, além de desafios relacionados à autonomia institucional.
As estruturas dos TCEs replicam a estrutura do TCU, com seus membros formados por indicações políticas. Conforme disposto na Constituição Federal, dois terços dos conselheiros são escolhidos pelas Assembleias Legislativas e um terço indicado diretamente pelo governador estadual. Esse modelo favorece vínculos políticos entre os conselheiros e os entes fiscalizados, levantando preocupações sobre a independência e a imparcialidade desses tribunais.
Segundo o último relatório da Organização Transparência Brasil sobre esse tema, 80% dos 233 conselheiros em exercício nos tribunais de contas brasileiros haviam ocupado, antes de sua nomeação, cargos eletivos ou de destaque na alta administração pública; 23% sofriam processos ou haviam recebido punição na Justiça ou nos próprios tribunais de contas; e 31% eram parentes de outros políticos, em alguns casos nomeados por familiares próximos, como tios, primos ou irmãos dos governadores.
Há uma percepção de que, com esse arranjo institucional “entre parceiros” e sem fiscalização efetiva, o aumento da burocracia para o repasse de emendas tende a beneficiar quem já domina o funcionamento do sistema, mantendo as distorções existentes sob uma aparência de formalidade. Além disso, desencoraja bons gestores e fornecedores, enfraquecendo a concorrência e inibindo soluções eficientes.
Investigações identificam desvios bilionários de recursos oriundos de emendas parlamentares
A ausência de controle efetivo tem sido apontada como um fator facilitador de irregularidades. Em 2024, aproximadamente R$ 1,4 bilhão em recursos oriundos de emendas parlamentares foi objeto de investigação por suspeita de desvio. A Operação Overclean revelou um esquema com ramificações em pelo menos 17 estados. A Operação Benesse apurou a cobrança de propina por deputados para liberar verbas da saúde no Maranhão.
Já a Operação Odoacro investigou fraudes em contratos da Codevasf bancados por emendas. No Rio Grande do Sul, a Polícia Federal desarticulou um grupo investigado por fraudes na destinação de emendas. Em todos esses casos, as falhas na fiscalização técnica e a sobreposição de influências políticas foram apontadas como elementos agravantes.
Arquivos são ocultados pelo governo
Em maio de 2024, o Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI) restringiu o acesso público a aproximadamente 16 milhões de documentos armazenados na plataforma Transferegov. Foram ocultados arquivos como planos de trabalho, notas fiscais e relatórios de execução, sob a justificativa de que conteriam informações sensíveis, protegidas pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Segundo nota oficial do ministério, a medida visa proteger dados pessoais e garantir conformidade legal até que se implemente uma solução tecnológica de anonimização.
A decisão, no entanto, foi alvo imediato de críticas por parte de entidades da sociedade civil e órgãos de controle. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) classificou a restrição como um retrocesso na política de transparência pública, por dificultar o acompanhamento da destinação de recursos orçamentários.
O caso chegou ao Tribunal de Contas da União (TCU) por meio de representação formal apresentada pelo subprocurador-geral Lucas Rocha Furtado, do Ministério Público junto ao TCU, em 19 de maio de 2025. No documento, Furtado argumenta que a medida compromete o controle social sobre a execução de mais de R$ 600 bilhões em recursos federais e afronta diretamente os princípios constitucionais da publicidade e da moralidade administrativa.
“É inadmissível que, sob o pretexto de proteção de dados pessoais, venha-se a impedir o controle social e a transparência sobre vultosos recursos públicos”, afirmou. “A restrição, na prática, esvazia o princípio republicano da publicidade dos atos administrativos e compromete seriamente o controle institucional”, afirma.
Projetos de lei propõem controle técnico e transparência
A PEC 329/2013 propõe alterações significativas na composição e funcionamento dos tribunais de contas. Entre as mudanças, destaca-se a exigência de concurso público de provas e títulos para as carreiras dos órgãos de contas.
Além disso, a proposta estabelece que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) fiscalize o trabalho dos ministros, conselheiros e auditores dos tribunais de contas, enquanto o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) fiscalize os procuradores do Ministério Público de Contas.
A relatora da matéria, deputada Adriana Ventura (Novo-SP), apresentou parecer favorável à admissibilidade da proposta, ressaltando que ela “tenta regrar e pontuar questões como formação acadêmica necessária e também cria o sistema nacional dos tribunais de conta, com o objetivo de dar mais transparência, ter como prioridade o combate à corrupção, estimular o controle social”.
Além disso, iniciativas parlamentares têm buscado aprimorar a transparência e a rastreabilidade das emendas parlamentares. O PLP 161/2024, apresentado pela mesma deputada, Adriana Ventura, e o PLP 162/2024, de autoria do senador Eduardo Girão (Novo-CE), visam estabelecer parâmetros mínimos de impessoalidade e eficiência na execução orçamentária e financeira dos entes federativos, bem como critérios técnicos para a aplicação das emendas parlamentares.
Enquanto essas propostas aguardam tramitação, dificultada pela baixa prioridade política entre aqueles que se beneficiam do modelo atual, seguem ausentes mecanismos eficazes de responsabilização e critérios objetivos de fiscalização. Esse cenário favorece distorções, dificulta o controle social e fragiliza a confiança na boa aplicação dos recursos públicos.
* Dimitrios Elias Grintzos é engenheiro civil, empresário, filósofo e diretor do Instituto de Formação de Líderes (IFL), em Brasília.