A decisão da Câmara, na quarta-feira (7), de aprovar o projeto de resolução que derruba a ação penal contra o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ) por suposta participação em tentativa de golpe de Estado, escala o embate institucional entre o Legislativo e o Supremo Tribunal Federal (STF).
A Câmara e o STF ficaram em uma posição de choque direto porque o ministro do Supremo, Cristiano Zanin, havia informado previamente o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), que os deputados não poderiam suspender totalmente a ação penal, apenas a parte que trata de supostos crimes cometidos por Ramagem antes de se tornar deputado.
Esse posicionamento foi ignorado pelos deputados, que viram nele uma tentativa do Supremo de interferir em uma prerrogativa do Legislativo.
Apresentada pelo PL, a proposta recebeu apoio expressivo do Centrão e da oposição – com 315 votos a favor e 143 contrários. Além de Ramagem, ela beneficia o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outros 32 denunciados pela Procuradoria-Geral da República (PGR) no mesmo inquérito.
Durante os debates, parlamentares governistas e oposicionistas admitiram que o projeto, embora centrado em Ramagem, favorece outros. Mais cedo, durante o ato em Brasília pela anistia dos réus do 8 de Janeiro, Bolsonaro pontuou: “ninguém tem que se meter” em decisões do Congresso.
Com a aprovação da resolução, o STF fica obrigado a suspender a tramitação da ação penal envolvendo os 34 acusados. Os ministros Alexandre de Moraes, relator do caso, e Cristiano Zanin, presidente da Primeira Turma da Corte, já avisaram que rejeitarão a decisão da Câmara.
O próprio presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), já havia criticado o Judiciário por “estar se metendo em praticamente tudo”. A declaração feita durante evento com empresários em São Paulo no último dia 28 veio dias após ter recebido ofício de Zanin informando que a Câmara não poderia suspender a íntegra do processo do golpe de Estado contra Ramagem.
Defensores e críticos da resolução da Câmara alegam amparo da Constituição
Em parágrafo único, a resolução 18/2025, recém-aprovada pela Câmara, manda sustar o andamento da Ação Penal contida na Petição n. 12.100, em curso no STF, “em relação a todos os crimes imputados”. O teor afronta a decisão da Primeira Turma da Corte em 26 de março, acolhendo a denúncia contra os 34 mentores da suposta tentativa de golpe de Estado.
O projeto de lei se baseia no artigo 53 da Constituição, que dá à Câmara e ao Senado poder de sustar o andamento de ações penais contra deputados enquanto o parlamentar mantiver seu mandato. No dia em que o documento foi enviado à Mesa Diretora, o líder do partido na Casa, Sóstenes Cavalcante (RJ), afirmou que uma eventual suspensão do processo beneficiaria todos os réus.
Da tribuna, o relator do projeto, deputado Alfredo Gaspar (União Brasil-AL), também avisou que a sustação alcançará todos os acusados e não apenas Ramagem. “Quem fez uma denúncia colocando todo mundo no mesmo vagão? O Ministério Público tinha a oportunidade de, sabendo que ele era deputado, ter o cuidado de fazer uma denúncia em apartado”, argumentou.
Gaspar, que fez carreira no Ministério Público e já exerceu o cargo de procurador-geral em Alagoas, defende que eventuais crimes atribuídos ao deputado Ramagem ocorreram após sua diplomação ou, se começaram antes, continuaram até os eventos de 8 de Janeiro. Por isso, entrariam na hipótese de que a Câmara tem prerrogativa de opinar e sustar o processo.
Quando o processo de resolução foi inserido na pauta, o líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias (RJ), acusou a oposição de tentar livrar Bolsonaro e outros denunciados dos julgamentos do STF. Ele avisou que a Corte vai cassar a medida. “Os senhores acham que alguém aqui está dando peitada no Supremo? Isso aqui vai ser totalmente desconsiderado”, disse.
Durante a aprovação do projeto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), na terça-feira (6), a base do presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou a apresentar pedido de adiamento da votação sob o argumento de que o relatório “extrapola” limites da Constituição ao sustar ação penal que se estenderia a todos os réus pela tentativa de golpe de Estado.
O deputado Rubens Pereira Junior (PT-MA) argumentou que o artigo 53 se restringe à possibilidade de sustação da ação contra deputados e senadores. O PSOL anunciou que irá acionar o STF contra a decisão, argumentando que ela é inconstitucional e interfere em julgamento conduzido pela Corte.
Oposição enaltece a prerrogativa do Congresso de sustar ações penais
A Resolução 18/2025 não precisa ser votada no Senado. A prerrogativa constitucional estabelece que o plenário da Casa a que pertence o parlamentar pode sustar o andamento de ações penais por crimes cometidos após a diplomação. Portanto, no caso de Ramagem, por ser deputado federal, a decisão cabe exclusivamente à Câmara. O Senado só participaria desse tipo de deliberação se o parlamentar fosse um senador.
A última palavra sobre o caso tende a ser do STF, que já deu indicações de que não acatará a decisão dos deputados. Por isso, a perspectiva é de semanas tensas, com cobranças de parlamentares por uma contraofensiva da Câmara contra a negativa dos ministros da Corte, consagrando uma nova crise institucional.
A deputada Caroline de Toni (PL-SC), líder da minoria, declarou que a aprovação da resolução para sustar ação penal contra Ramagem é apenas o cumprimento pela Câmara de seu papel de guardiã da Constituição.
Ela lembrou que de deputado denunciado foi incluído no processo apenas para “atrair pessoas sem foro privilegiado” e funcionar como mais um argumento para justificar que a ação seja julgada no STF. Mas que essa estratégia não teve sucesso, pois a Câmara reagiu com base na lei.
A deputada Bia Kicis (PL-DF) também defendeu a prerrogativa dos deputados de suspender a ação penal, afirmando que a Constituição é muito clara ao permitir que o Parlamento suste ações penais contra seus membros enquanto durar o mandato.
Segundo o cientista político Ismael Almeida, o STF foi pego no contrapé ao tentar conter os efeitos da decisão da Câmara que barrou o processo contra o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ). Para ele, ao afirmar que a suspensão não se estende aos demais réus, o próprio STF admite que ela vale, sim, para Ramagem — o que representa um revés para a Corte.
“Há poucos meses, o STF estendeu o foro privilegiado para investigados que já haviam deixado o mandato, mas agora quer dizer que a decisão da Câmara não vale para quem está no mesmo processo e não tem foro. Um contrassenso total”, resume Almeida.
Vitória de Bolsonaro, resolução serve como autoproteção dos deputados
Para o cientista político Leonardo Barreto, diretor da consultoria Think Policy, o texto aprovado pela Câmara desafia de forma deliberada o STF. Por isso, foi comemorado como vitória por Bolsonaro. Sem perspectiva real de absolvição na Corte, a estratégia do ex-presidente passa a ser deslegitimar o próprio processo.
Mas o especialista ressalta que o embate institucional extrapola a figura de Bolsonaro. “Ele ocorre em um contexto delicado, no qual diversos deputados se veem ameaçados por possíveis investigações conduzidas pelo ministro Flávio Dino, do STF, relacionadas à falta de transparência na execução de emendas parlamentares”, sublinha.
Soma-se a isso um sentimento difuso de arrependimento no Legislativo por ter, em 2022, referendado o processo e a prisão do então deputado Daniel Silveira, motivada por ataques ao STF. Para Barreto, o episódio também evidencia a fragilidade do governo Lula, que se mostra incapaz de arbitrar o conflito e opta por assistir à escalada da crise entre Legislativo e Judiciário.
“Apesar de tentativas de conciliação entre os Poderes, o presidente da Câmara, Hugo Motta, está hoje completamente à mercê da vontade do plenário”, afirma Barreto. Mas, após os alertas feitos pelo ministro Zanin, tudo indica que a Corte declarará a inconstitucionalidade da resolução.