Desde que desembarcou na Rússia em 3 de maio a bordo de um KC-30, o maior da Força Aérea Brasileira (FAB) com capacidade para mais de 200 passageiros, a primeira-dama Janja Lula da Silva participou de ao menos 18 eventos que constam em sua agenda oficial. A maioria envolve atividades turísticas como visitas a espaços artísticos e culturais, além de reuniões com reitores, diretores e professores universitários com foco em “potencializar a cooperação entre os países” e em ações de articulação política em encontros com autoridades locais.
A viagem ocorre em meio a novas críticas de parlamentares da oposição por Janja fazer viagens internacionais promovendo gastos exorbitantes aos cofres públicos. A Justiça Federal de Brasília acolheu nesta semana uma ação popular apresentada pelo vereador do DF Guilherme Kilter (Novo) e pelo advogado Jeffrey Chiquini, que questiona a legalidade das viagens da primeira‑dama.
Na peça, argumenta‑se que os deslocamentos internacionais autorizados por decretos presidenciais — incluindo Nova York em março de 2024, Roma em fevereiro e abril de 2025, Paris em março de 2025, Moscou e São Petersburgo em maio de 2025 — foram realizados sem amparo em cargo público formal, gerando despesas excessivas ao Tesouro Nacional com passagens, hospedagem e uso de aeronaves oficiais.
O vice-líder da Oposição na Câmara, o deputado Rodrigo Valadares (União-SE) alertou ser inaceitável que a primeira-dama se comporte como uma chefe de Estado, com uma agenda própria de viagens internacionais às custas do contribuinte. “O papel dela não é representar o Brasil oficialmente. É viagem atrás de viagem, sem qualquer transparência sobre os custos ou benefícios para o país. Essa farra com dinheiro público precisa acabar”.
Em março deste ano, no entanto, a Advocacia‑Geral da União (AGU) definiu que o cargo de primeira‑dama é de interesse público, cabendo ao Estado arcar com os custos a ele inerentes, incluindo deslocamentos oficiais. O parecer também determinou que suas atividades devem ser conduzidas com total transparência, com divulgação permanente de agendas, tal como ocorre com demais autoridades de alto escalão.
Ela viajou antes de Lula para a Rússia sob a justificativa de “promover agendas brasileiras nas áreas sociais, educacionais e culturais” de acordo com Decreto assinado pelo próprio presidente em 30 de abril. O documento não considera atividades políticas, apesar de encontros e reuniões com políticos locais.
Em nota, a assessoria da primeira-dama justificou sua ida à Rússia quase uma semana antes do presidente. “A primeira-dama Janja Lula da Silva integra a comitiva brasileira com destino à Rússia onde, além de acompanhar a agenda oficial do presidente Lula no país e a Cerimônia de celebração dos 80 anos do Dia da Vitória na Segunda Guerra Mundial, cumprirá uma série de agendas entre os dias 4 e 8 de maio. Tendo em vista a relação entre Rússia e Brasil, com importantes acordos de cooperação na área de educação e cultura, Janja focará suas agendas nestes temas, além da Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza, iniciativa que a primeira-dama tem promovido com muita determinação desde quando a Aliança foi proposta pelo presidente Lula durante a presidência brasileira do G20”, descreveu.
O deputado estadual Guto Zacarias (União-SP) afirmou que “Janja parece debochar do povo brasileiro” e lembrou que desde que se tornou primeira-dama, foram mais de 30 viagens internacionais sem quaisquer relevâncias para quem custeia o que chamou de “farra”. “E para piorar, sem a presença do marido, que seria a única autoridade capaz de dar algum verniz institucional à iniciativa, ainda que seja imoral. Estamos atentos e vamos expor cada uma dessas imoralidades no Janjômetro”.
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Agenda teve visita a universidades que restringem liberdade de expressam e punem críticos de Putin
Janja visitou instituições russas ligadas à educação e à cultura em um cenário no qual a Rússia tenta ampliar sua influência cultural em países da África e da América Latina. O objetivo do Kremlin é usar essas ações, chamadas de soft power, para angariar apoio político da população e de governantes para suas agendas internacionais e apoio político para a invasão da Ucrânia.
Segundo analistas, os contatos de Janja podem resultar em mais ações de propaganda russa no Brasil disfarçada de intercâmbio cultural, social e educacional. Uma estratégia similar foi usada na África e, combinada com ações desinformação em redes sociais, resultou na interferência direta do Kremlin em governos locais e na retirada de tropas ocidentais de países como Mali, Chad, Níger e Mauritânia.
No dia 3 de maio Janja fez uma visita ao Kremlin, a sede do governo russo. Segundo sua agenda, isso ocorreu por convite do governo russo de Vladmir Putin. No domingo (4), ela esteve em um encontro com professores de língua portuguesa, membros da comunidade brasileira na Rússia e seguiu para uma visita guiada ao Teatro Bolshoi.
Na segunda-feira, Janja visitou a Universidade Estatal de São Petersburgo, a mais antiga instituição de ensino superior da Rússia. A universidade vem restringindo a liberdade acadêmica e a autonomia universitária especialmente desde a invasão russa à Ucrânia. Relatórios de organizações como a AAUP (sigla em inglês da Associação Americana de Professores Universitários) apontam que, nos últimos anos, a universidade reprimiu vozes dissidentes com ordens internas proibindo comentários e rotulando órgãos de mídia internacionais como “agentes estrangeiros”. A universidade afastou professores críticos ao governo, inserindo a instituição numa agenda estatal de “re‑educação” nacionalista que ameaça a pluralidade de ideias.
A AAUP é uma associação profissional norte‑americana com a missão de defender a liberdade acadêmica, a governança compartilhada e os padrões profissionais no ensino superior.
Janja também participou de uma reunião com a vice-reitora Interina de Desenvolvimento Estratégico e Parceria, Anastassia Iarmosh. Na sequência esteve com professores russos e estudantes dos cursos de Português e de Relações internacionais da Universidade Estatal de São Petersburgo, foi ao Teatro Mariinsky e depois assistiu ao Balé “Lago dos Cisnes”.
Na terça (6), Janja visitou o Museu Hermitage a convite do governo russo, acompanhada pela vice-governadora de São Petersburgo, Irina Potekhina e em companhia do presidente da Comissão da Cultura de São Petersburgo, Feodor Boltin.
No mesmo dia foi à Catedral do Sangue Derramado, mais uma vez a convite do governo russo, acompanhada também pela vice-governadora de São Petersburgo e pelo presidente da Comissão da Cultura e em seguida almoçou com o governador de São Petersburgo, Alexander Beglov.
Na quarta (7) Janja almoçou com mulheres Empreendedoras do Brics, um bloco diplomático informal formado por Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Irã e Indonésia. Ela integrou um debate em mesa redonda que discutiu “A Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza como chave para a cooperação internacional contemporânea”.
Janja também se reuniu com o reitor da HSE, a Universidade Nacional de Pesquisa e Escola Superior de Economia. A HSE tem sido alvo de críticas por restringir a autonomia acadêmica e reprimir vozes dissonantes ao governo russo. Relatórios também da Associação Americana de Professores Universitários e do Ponars, uma rede de mais de 140 acadêmicos que gera pesquisas e análises sobre segurança e política na Eurásia, documentam casos em que professores críticos ao Kremlin foram demitidos ou tiveram contratos não renovados.
Além disso, a implementação da lei de “agentes estrangeiros” tem servido de pretexto para censurar um jornal estudantil, pressionar pesquisadores a evitar debates sobre temas considerados sensíveis ao governo, com a liberdade de investigação e expressão.
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Parcerias com universidades brasileiras e evento polêmico com Putin
A Universidade Nacional de Pesquisa e Escola Superior de Economia da Rússia já firmou mais de uma dezena de acordos de cooperação com universidades brasileiras, fruto de um esforço iniciado em 2014, durante o governo de Dilma Rousseff (PT) com a visita de uma delegação de instituições nacionais. Em outubro de 2024, na no “Dia Internacional de Parceria Rússia–Brasil”, foram formalizados convênios e missões com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade Estadual de Santa Catarina (UFKSC) e a Universidade de Brasília (UnB).
Entre esses projetos, destaca‑se um programa de dupla titulação em Gestão e Política de Ciência, Tecnologia e Inovação com a Unicamp. Há ainda outros acordos de intercâmbio acadêmico e pesquisa nas áreas de ciências sociais, economia, engenharia e tecnologia. Janja chegou a postar em suas redes sociais que “o interesse mútuo pelo compartilhamento de conhecimento e de nossas culturas fortalece cada vez mais a relação entre Brasil e Rússia”.
Além disso, a Rússia destina recursos financeiros para manter escolas de língua russa e organizações não governamentais destinadas a difundir propaganda política russa e arregimentar colaboradores no Brasil.
A visita de Janja a vários pontos turísticos antes da chegada de Lula também foi justificada por seus assessores como sendo um convite do governo russo para estar em “locais de importância histórica e cultural para o país”. Sua assessoria lembrou que o Brasil é o único país fora da Rússia que possui uma filial do Teatro Bolshoi e da Escola do Teatro Bolshoi, em Santa Catarina. Confirmou ainda sua visita à Fábrica de Porcelana Imperial, uma das mais antigas da Europa, fundada em 1744, “a primeira e única empresa na Rússia produzindo produtos de porcelana artísticos”.
Na quinta-feira (8) a única agenda pública de Janja foi um jantar oferecido pelo presidente russo, Vladimir Putin, ao lado do presidente brasileiro. Lula só embarcou para a Rússia na terça-feira (6) e chegou na quarta. No dia 9 de maio o casal participou um ato polêmico promovido pelo Kremlin para celebrar o Dia da Vitória da Grande Guerra Patriótica – a forma como Moscou celebra a vitória na Europa na Segunda Guerra. O evento foi usado para demonstrar força militar e apoio político de países em desenvolvimento ao governo de Vladimir Putin.
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