A aplicação de sanções da Lei Magnitsky contra o que o governo americano vem chamando de “cúmplices da censura” passou a ser tratada, nos últimos dias, como mais do que mera especulação no Brasil.
Declarações recentes de autoridades americanas indicam que alguma medida vai ser adotada em resposta às violações da liberdade de expressão e perseguição a opositores, especialmente aquelas que afetam pessoas vivendo em território americano.
A incerteza sobre quais sanções poderiam ser aplicadas e a quem exatamente elas se destinariam tem alimentado expectativas no Brasil desde o ano passado, quando Donald Trump venceu as eleições presidenciais. O tema ganhou força na semana passada depois que o secretário de Estado americano, Marco Rubio, declarou que “há uma grande possibilidade” de que medidas concretas sejam adotadas em relação ao Brasil.
Isso foi reforçado na quinta-feira (29) pelo Bureau of Western Hemisphere Affairs (Gabinete de Assuntos do Hemisfério Ocidental), que publicou uma mensagem em português, provavelmente para alertar as autoridades brasileiras: “Nenhum inimigo da liberdade de expressão dos americanos será perdoado”.
Nas redes sociais, tem circulado a ideia de que as sanções poderiam ter impacto muito além da perda de visto pelo ministro Alexandre de Moraes, afetando outros ministros e também familiares deles e outros cúmplices da censura.
Há quem cogite, por exemplo, um bloqueio automático de contas bancárias, suspensão de cartões de crédito e congelamento de bens até mesmo no Brasil. Dois juristas consultados pela Gazeta do Povo, especialistas em Direito Internacional e Comercial, pregam cautela em relação a essas hipóteses.
Em primeiro lugar, lembram eles, nem todo sancionado pela Lei Magnitsky está sujeito a todas as sanções previstas por essa lei só porque entrou na lista de sancionados.
A sanção mais provável, e também a mais simples de ser aplicada, é a revogação ou negação de vistos para entrada nos Estados Unidos. Essa medida não exige homologação no Brasil para ter efeito, porque se trata de um ato soberano do governo americano. Nesse ponto, os juristas consideram bastante provável que o ministro Alexandre de Moraes perca o visto de entrada nos EUA, com efeito imediato, e não descartam que o mesmo ocorra com outras autoridades e familiares.
“Os Estados Unidos, enquanto no exercício da sua soberania, pode aplicar, sim, a lei contra autoridades brasileiras. Não poderia contra o presidente da República, que tem livre acesso enquanto representante da soberania brasileira. Mas quaisquer outras autoridades públicas podem ter que responder nos termos da Lei Magnitsky, inclusive os seus familiares. Essa autoridade pública, seja lá quem for, pode, sim, além de ter o visto cassado, ter bloqueios de bens e contas bancárias e suspensão de autorizações comerciais”, afirma Alexandre Coutinho Pagliarini, pós-doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa e especialista em Direito Internacional.
Em relação ao bloqueio de contas bancárias e transações comerciais, contudo, ainda que as sanções sejam aplicadas, o alcance do efeito delas é uma questão mais complexa.
O que poderia acontecer em relação a bancos e transações comerciais dos cúmplices da censura
Mesmo que as medidas mais severas contra os cúmplices da censura sejam aplicadas, de acordo com Érica Gorga, doutora em Direito Comercial pela USP, não há garantia de que elas teriam efeitos jurídicos no Brasil. “A sanção pode estar prevista por uma lei estrangeira, mas não produzir efeitos, não ser eficaz juridicamente, em solo brasileiro. Porque, para ter eficácia, ela tem que ser homologada aqui. E a gente não precisa de uma bola de cristal para saber que o Judiciário brasileiro não vai homologar isso”, afirma ela.
Sem o reconhecimento do Judiciário brasileiro, explica Gorga, bancos e instituições financeiras no Brasil não têm base legal para encerrar contas ou restringir transações por causa de sanções externas.
Para ambos os especialistas, está fora de cogitação que os sancionados pela Lei Magnitsky tenham suas contas em bancos nacionais afetadas pela sanção.
“Absolutamente não. Os ativos financeiros podem ser congelados, sim, lá nos Estados Unidos, ativos que eventualmente estejam lá em bancos norte-americanos. Agora, aqui dentro do Brasil, isso é impossível, porque estamos falando de outra soberania”, diz Pagliarini.
Mesmo em relação a bancos estrangeiros, a possibilidade de fazer transações não pode ser totalmente descartada. “Vai depender do banco. O banco estrangeiro vai ter que passar uma ordem para a subsidiária brasileira, e há diferentes gradações do quanto que esse banco estrangeiro tem intervenção sobre o subsidiário brasileiro. Vai depender da estrutura societária deles”, afirma Gorga.
Embora a matriz de um banco estrangeiro possa decidir por bloqueios preventivos, a subsidiária brasileira, que é regida pela legislação nacional, pode resistir a tais ordens, alegando possibilidade de violação da soberania e do sigilo bancário, explica a jurista. A adoção dessas medidas no Brasil, portanto, ficaria sujeita a reversão judicial.
Uma medida radical, como a decisão da instituição financeira de sair do Brasil, é pouco provável. Gorga lembra que até mesmo Elon Musk, proprietário do X, acabou cedendo ao Judiciário brasileiro depois de alguns meses de suspensão da rede social no país.
No entanto, para instituições financeiras e empresas estrangeiras sem operação direta no Brasil, o cenário é bem diferente. Nesse ponto, se autoridades cúmplices da censura e seus familiares tiverem contas bancárias ou contratos com empresas americanas sem escritórios no Brasil, dificilmente poderão usá-los.
Plataformas como a OpenAI, responsável pelo ChatGPT, assim como outras gigantes da tecnologia sem escritório aqui, podem se recusar a prestar serviços a sancionados com base na Lei Magnitsky. Como essas empresas operam somente fora do território brasileiro, elas podem adotar posturas mais restritivas contra as autoridades sancionadas sem necessidade de homologação judicial.