Uma força-tarefa da Polícia Federal (PF), a mesma que conduziu inquéritos como o do suposto golpe de Estado e o das joias sauditas, inicia nesta semana as investigações determinadas pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) contra o deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro (PL-SP).
Na avaliação de analistas ouvidos pela reportagem, como a PF e o STF não têm competência legal para investigar Eduardo Bolsonaro com efeitos práticos dentro dos Estados Unidos, a medida pode ter como alvo principal o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que está no Brasil.
Eduardo pediu licença do mandato de deputado e está há cerca de dois meses nos Estados Unidos em autoexílio. Ele está mobilizando aliados americanos para apoiar sanções de Washington contra o ministro Alexandre de Moraes por alegados abusos contra dos direitos humanos, prisões de inocentes, censura a redes sociais e decisões judiciais arbitrárias.
A investigação foi determinada por Moraes na segunda-feira (26) após um pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), que apontou indícios “da prática dos crimes de coação no curso do processo, obstrução de investigação de organização criminosa e tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito”.
O pai dele, o ex-presidente Jair Bolsonaro, deve ser o principal foco das atenções da investigação, sob o argumento de que afirmou que financia a estada do filho no exterior. O resultado do inquérito pode ser até um pedido de prisão preventiva contra Bolsonaro.
O alerta vem do constitucionalista André Marsiglia. “O caminho seria o de dizer que o Bolsonaro financia o filho lá fora e ao financiar o filho, financiaria por consequência os supostos ilícitos que o filho estaria cometendo e com isso, se beneficiando desses ilícitos porque isso tumultuaria o processo de Jair Bolsonaro no Brasil. Isso poderia resultar em um pedido de prisão preventiva do Bolsonaro aqui para tentar um recuo dos EUA e criar algum tipo de constrangimento”, analisa.
Eduardo Bolsonaro classifica como tentativa de intimidação o fato de seu pai ter sido colocado com um dos alvos da investigação. Ele critica Moraes e o procurador-geral Paulo Gonet por não respeitar o princípio jurídico da individualização de condutas dos investigados. Ou seja, que Eduardo é responsável por suas próprias ações.
Juristas afirmam que o novo inquérito pode ser um ato de desespero do STF e da PGR após o secretário de Estado americano Marco Rubio declarar ser possível a aplicação da Lei Magnitsky Global contra autoridades brasileiras. Essa legislação permite que os EUA sancionem estrangeiros envolvidos em corrupção ou violações graves de direitos humanos, bloqueando bens e restringindo vistos.
Se a ferramenta for aplicada de forma completa, Moraes pode ser excluído do sistema financeiro global (inclusive no Brasil) e perder acesso a investimentos que tenha em solo americano, além de não poder entrar nos Estados Unidos.
Na quarta-feira (28), Marco Rubio afirmou na rede social X que anunciaria uma nova política de restrição de vistos para indivíduos que censuram os americanos. A América Latina e a Europa foram citados como locias onde estariam os possíveis alvos, mas até o momento apenas restrições a cidadãos chineses foram divulgadas.
Na terça-feira (27), Eduardo Bolsonaro usou sua conta no X para se manifestar sobre a instauração do inquérito. “Estou nos EUA solicitando a autoridades que acionem determinados dispositivos legais do país. Se o que estou fazendo é criminoso, então o governo brasileiro está acusando o secretário Marco Rubio de cometer um crime nesta audiência no Congresso dos EUA”.
Eduardo Bolsonaro disse ainda que “não há crime de coação quando o que se propõe é algo lícito”. “Na sanha totalitária, Moraes e sua trupe de aloprados vão criar um grave incidente diplomático com os EUA”, escreveu o deputado licenciado.
O doutor em Direito Internacional Luiz Augusto Módolo avalia com ceticismo e preocupação a abertura do inquérito. Segundo ele, a investigação revela uma tentativa de criminalizar práticas políticas legítimas e levanta sérias dúvidas jurídicas.
De acordo com Módolo, o que começou como “risos de escárnio e deboche” entre autoridades brasileiras sobre a possibilidade de sanções internacionais, tornou-se um cenário concreto após a manifestação de Rubio. “Não dá para saber quanto disso é mérito de Eduardo Bolsonaro, mas podemos imaginar que seu papel foi relevante, ao lado de muitos outros que atuam nos EUA”, afirma o especialista.
Para Módolo, a atuação de Eduardo Bolsonaro não difere, em essência, da conduta do hoje ministro do STF Cristiano Zanin, que, antes de assumir a toga, “circulou pelo mundo como advogado denunciando o que chamava de ‘lawfare’ [guerra jurídica] contra Lula”. “Qualquer cidadão brasileiro é livre para atuar internacionalmente em defesa do que entende necessário para sua pátria. Pode apresentar petições à Corte Interamericana de Direitos Humanos, à ONU ou ao Departamento de Estado Americano. Não há nada de ilegal ou ilegítimo nisso”, enfatiza.
Ele lembra ainda que essa prática tem precedentes históricos importantes. “É o mesmo que fez [a estilista de moda] Zuzu Angel, que levou ao exterior denúncias sobre o assassinato do filho durante a ditadura militar. Sua atuação contribuiu para que o Brasil sofresse pressão”, compara ao considerar natural que instituições estrangeiras sejam livres para acolher ou rejeitar essas demandas. “Pelo visto, o secretário Rubio se comoveu com a situação do Brasil”, pontua.
No entanto, o jurista critica a reação das autoridades brasileiras: “Agora, a PGR e o STF, talvez na ânsia de provar que não merecem ser enquadrados na Lei Magnitsky, decidem instaurar mais um inquérito. É mais um a se somar aos vários que tramitam desde 2019, sempre sem prazo para acabar”.
Outro aspecto técnico destacado por Módolo é a questão da jurisdição. “Curiosamente, tudo o que Eduardo Bolsonaro fez foi em solo americano, onde o STF não tem competência. Mesmo que as condutas tivessem como alvo o Brasil, o Supremo não pode puni-lo nos Estados Unidos. O artigo do Código Penal que prevê a extraterritorialidade dos crimes cometidos por brasileiros é taxativo e não contempla essa hipótese”, explica.
Segundo ele, Eduardo não conspirou contra o Brasil, nem praticou atos de sedição ou guerra. “Tudo o que ele fez foi o bom e velho ‘lobby’ [que é uma prática legal e corriqueira nos Estados Unidos]. Se isso foi acolhido, parabéns para ele”, disse. Ele também avaliou que nenhuma decisão judicial brasileira será revertida por eventual sanção ou pressão dos Estados Unidos.
O jurista também opina que o alvo real do inquérito não é o deputado licenciado, mas seu pai, o ex-presidente Jair Bolsonaro. “No fundo, o grande objetivo do inquérito é Bolsonaro pai, que já é alvo de processos conduzidos a toque de caixa. E mais: se Eduardo Bolsonaro está licenciado e sequer estava em ação oficial nos EUA, mantendo-se por meios lícitos por lá, ele é mero cidadão que faz algo similar a informar a uma Ouvidoria que há um problema — um completo fato atípico”.
“A PF e o Judiciário brasileiro não têm jurisdição alguma nos Estados Unidos, portanto, a investigação aqui não tem efeitos práticos lá. Se for para monitorar as redes sociais do Eduardo sob o possível pretexto, alegação de incitação ao que sugerem ser crime, qualquer cidadão poderia fazê-lo, não precisaria de um inquérito no STF para isso”, avalia o especialista em segurança pública e investigador aposentado das forças federais de segurança, Sérgio Gomes.
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Alerta para problemas na condução do inquérito contra Eduard Bolsonaro nos EUA
Para o constitucionalista André Marsiglia, a investigação levanta importantes questões jurídicas e institucionais que precisam ser consideradas com cautela. O Inquérito 4.995 apura a possível prática dos crimes de coação no curso do processo, obstrução de investigação sobre organização criminosa e tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito. O pedido da PGR tem como base manifestações públicas de Eduardo Bolsonaro sobre possíveis sanções americanas a Moraes.
Marsiglia, entretanto, levanta uma série de objeções jurídicas à condução do inquérito, que vão desde a suspeição de Alexandre de Moraes, passando pela imunidade parlamentar, à soberania, até o fato que pedidos de sanções protagonizados por Eduardo Bolsonaro nos EUA não constituem crime.
O constitucionalista alerta ainda às possíveis consequências internas ao mandato na Câmara dos Deputados de Eduardo Bolsonaro. O líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias (RJ) protocolou nesta semana uma representação contra Eduardo no Conselho de Ética por suposta quebra de decoro e abuso de prerrogativas constitucionais.
O advogado ressalta que a atuação da PGR, ao requerer a investigação do parlamentar licenciado, pode violar garantias fundamentais. “As sanções eventualmente impostas pelos Estados Unidos não interferem na atuação judicial de Moraes — ele continuará julgando como quiser. Mas uma condenação de Eduardo poderia impedi-lo de exercer plenamente suas funções legislativas. A medida, portanto, fere a imunidade parlamentar, a autonomia do Legislativo e a própria soberania nacional”, destaca.
Para o especialista, a participação de Alexandre de Moraes como relator, mais uma vez, é incompatível com o princípio da imparcialidade. “Moraes, como uma das autoridades supostamente visadas pelas sanções, não pode ser o relator. Sua suspeição por interesse direto no resultado do processo é óbvia”, afirma. Ele frisa que a imposição de sanções não configuraria um atentado à soberania do Brasil, mas uma medida direcionada à pessoa do ministro.
“Moraes não é a pátria. Não se pode dizer que sua punição seja um crime de lesa-pátria”, pondera. O constitucionalista também questiona o enquadramento jurídico da conduta investigada: “Se pleitear punição de um ministro for considerado crime, então o próprio pedido de impeachment de ministros, previsto na Constituição, também seria. Isso significaria que a própria Constituição seria criminosa, o que é um absurdo jurídico”, atenta avaliando que buscar apoio internacional para coibir eventuais abusos de autoridades não pode ser tipificado como crime.
“Se recorrer a instâncias internacionais como a Corte Interamericana de Direitos Humanos ou o Tribunal Penal Internacional não é crime, tampouco pode ser a tentativa de obter sanções externas contra autoridades nacionais. Caso contrário, teríamos de considerar ilícito, por exemplo, o presidente da República ter pedido auxílio à China para regular redes sociais”, compara.
O advogado lembra que as supostas sanções buscadas por Eduardo Bolsonaro nos EUA não se limitariam à atuação de Moraes no “julgamento do golpe”, mas estariam relacionadas a um contexto mais amplo. “As críticas não se restringem à sua participação nesse caso específico, mas dizem respeito ao que muitos consideram censura e autoritarismo por parte da Corte desde 2019, quando foi instaurado o inquérito das fake news”, avalia.
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PGR diz que Eduardo Bolsonaro age para pressionar EUA a intimidar autoridades brasileiras
Segundo a petição apresentada pela PGR, Eduardo Bolsonaro teria, desde o início de 2025, atuado publicamente para pressionar e intimidar autoridades brasileiras, buscando apoio do governo dos Estados Unidos para impor sanções a integrantes do STF, da PGR e da PF.
As ações de Eduardo Bolsonaro, segundo o Ministério Público, configurariam tentativa de coagir autoridades envolvidas em investigações e processos contra ele, seu pai, Jair Bolsonaro, e aliados políticos.
De acordo com a PGR, as manifestações do parlamentar, veiculadas principalmente por redes sociais e entrevistas à imprensa, possuem “tom intimidatório” e indicam uma estratégia para embaraçar as investigações e o julgamento da Ação Penal 2.668, na qual o ex-presidente é acusado de liderar uma suposta organização criminosa que tinha como objetivo romper a ordem democrática no país.
O ministro Alexandre de Moraes determinou que a Polícia Federal realize o monitoramento e a preservação de conteúdos publicados nas redes sociais de Eduardo Bolsonaro relacionados aos fatos apurados. Além disso, autorizou a tomada de depoimentos, incluindo do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Devido à ausência de Eduardo Bolsonaro do território nacional, o ministro autorizou que seus esclarecimentos sejam prestados por escrito e que ele seja notificado inclusive por meio eletrônico. O relator também determinou o envio de ofício ao Ministério das Relações Exteriores, solicitando informações sobre as autoridades diplomáticas brasileiras nos Estados Unidos aptas a prestar esclarecimentos solicitados pela PGR.