Os depoimentos das testemunhas no processo da suposta tentativa de golpe de Estado em 2022, realizados nas últimas duas semanas no Supremo Tribunal Federal (STF), revelaram fragilidades na versão dos fatos e nas teses apresentadas pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e pelo ministro Alexandre de Moraes em seus votos e decisões no caso. Com o fim da fase das oitivas de testemunhas, nesta segunda-feira (2), Moraes decidiu acelerar o processo e marcar, para a próxima segunda-feira (9), os depoimentos dos réus no processo.
O depoimento no STF do general Marco Antônio Freire Gomes, ex-comandante do Exército e cujo interrogatório na Polícia Federal serviu como uma das bases da denúncia, revelou-se mais ameno do que o esperado. A aposta, entre ministros e acusadores, era de que ele reforçasse a tentativa de incriminar Bolsonaro.
No interrogatório, porém, o general negou que tenha dado voz de prisão ao ex-presidente numa das reuniões que o ex-mandatário fez com seus chefes das Forças Armadas em dezembro de 2022. Segundo a acusação, na ocasião, Bolsonaro teria submetido a eles a “minuta golpista”, esboço de um decreto de intervenção no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com a finalidade de revisar a apuração dos votos e refazer a eleição presidencial.
Freire Gomes disse que era um “estudo” e que apenas advertiu o ex-presidente das “consequências jurídicas” – caso o texto desbordasse das finalidades constitucionais de um estado de defesa, de sítio ou de operação de garantia da lei e da ordem (GLO).
Segundo o general, Bolsonaro “concordou” com a advertência. “Se ele saísse desses aspectos jurídicos, além de não contar com nosso apoio, poderia ser implicado. Ele concordou e não falou mais nada”, relatou Freire Gomes.
O general afirmou ainda que teria dito a Bolsonaro que o Exército não embarcaria numa medida que interferisse no processo eleitoral. “O principal aspecto é que aquilo que competiria às Forças Armadas, não víamos como participar disso. Ele deveria atentar para todos os aspectos, concordou que não havia o que fazer. Não iríamos participar de assunto que extrapolasse nossa competência constitucional”, disse o general.
Mas houve um depoimento mais contundente, mais alinhado com as teses da PGR e de Moraes. Ele foi o depoimento do brigadeiro Carlos Baptista Júnior, ex-comandante da Aeronáutica e que participou das reuniões com Bolsonaro. Ao contrário de Freire Gomes, que negou ter participado de reuniões “golpistas”, Baptista Júnior realçou, de forma mais clara, que Bolsonaro, em sua visão, pretendia impedir a posse de Lula.
“Comecei a achar que o objetivo era para não haver assunção do presidente eleito”, disse Baptista Júnior, referindo-se a várias reuniões de Bolsonaro com os comandantes em novembro de 2022. Ele relatou ainda que, numa das reuniões, perguntou ao ministro da Defesa, de forma clara, se essa era a consequência do decreto em discussão. O general Paulo Sérgio Nogueira teria ficado calado, consentindo, e por isso o brigadeiro teria deixado a sala. Baptista Júnior disse, porém, que não leu o texto do ato. A minuta do decreto, só encontrada em 2023, nunca foi assinada por Bolsonaro.
O atual comandante da Marinha, Marcos Sampaio Olsen, negou, em depoimento, qualquer mobilização das tropas, no fim de 2022, para uma ruptura institucional. “Em momento algum houve ordem, preparo ou mobilização de veículos blindados para fins que impeçam ou restrinjam o exercício dos poderes constitucionais”, afirmou o comandante da Marinha no depoimento.
Ele foi ouvido porque seu antecessor, o almirante Almir Garnier Santos, é réu no processo porque teria, segundo relatos juntados na denúncia, se colocado “à disposição” de Bolsonaro numa das reuniões.
Chamado a depor como testemunha, Aldo Rebelo tentou esclarecer, em depoimento, que Garnier teria usado apenas uma “força de expressão”, mas foi repreendido por Moraes. “O senhor não tem condição de avaliar a língua portuguesa naquele momento. Atenha-se aos fatos”, disse o ministro.
Do ponto de vista jurídico, a mera discussão ou cogitação de uma medida prevista na Constituição, ainda que aplicada com desvio de finalidade, não configura crime. Delitos como golpe de Estado e tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito exigem atos concretos, executórios, que possam destituir um governo legitimamente já constituído e restringir ou impedir o exercício dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Para a consumação dos dois crimes, ainda é necessária que haja o emprego de violência ou grave ameaça. Para suprir essa lacuna, a denúncia apontou a invasão e depredação do STF, do Congresso e do Palácio do Planalto como a tentativa derradeira de golpe e de impedir o exercício dos poderes – essa tese, amplamente questionável, já se solidificou na Corte nas centenas de condenações dos manifestantes.
Todos os demais depoimentos não apresentaram qualquer prova ou mesmo afirmação de ligação de Bolsonaro com os atos de 8 de janeiro de 2023. Muitos disseram desconhecer qualquer plano de estado de defesa, sítio ou GLO após o segundo turno – o que indica que seria uma discussão isolada no entorno de Bolsonaro, concentrada em militares de média patente, que, segundo as investigações, tentavam pressionar os superiores.
“Jamais, nunca”, disse o governador Tarcísio de Freitas ao ser questionado pela defesa de Bolsonaro se teve conhecimento de algum plano ou intenção de ruptura. “Assim como nunca tinha acontecido durante meu período de ministério, da mesma forma nessa reta final, nas visitas que fiz, nas conversas, jamais me mencionou qualquer tentativa de ruptura. O presidente Bolsonaro estava triste, resignado. Estava com erisipela muito grave, inclusive com um acesso no braço para medicação intravenosa. Conversamos várias coisas e esse assunto nunca veio à pauta”, detalhou Tarcísio.
O ex-advogado-geral da União, Bruno Bianco, afirmou que, após o segundo turno da eleição de 2022, participou de uma reunião do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) com comandantes das Forças Armadas. Na reunião, relatou, Bolsonaro quis saber se havia algum “problema jurídico” houvesse comprometido a eleição, ouviu que não, e segundo Bianco, “se deu por satisfeito”.
“Eu disse que as eleições ocorreram de forma legal. Disse que absolutamente não, que tinha comissão acompanhando, que a eleição foi absolutamente transparente. Na minha frente, ele se deu por satisfeito”, contou o ex-advogado-geral da União.
No total, foram ouvidas 52 pessoas, indicadas pela PGR e pelas defesas dos réus. Quase todos ou negaram a existência de conversas e planos de ruptura ou disseram desconhecer algo nesse sentido. Se manifestaram assim militares ou ex-assessores, como o coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro; Alexandre Ramagem, ex-diretor da Abin; Anderson Torres, ex-ministro da Justiça; Almir Garnier Santos, ex-comandante da Marinha; Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional; Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa; e Walter Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil.
STF marca depoimentos de réus para a próxima semana
O agendamento das oitivas do ex-presidente Jair Bolsonaro e de outros sete acusados de planejar uma ruptura que impedisse a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2023, é mais um sinal da rapidez dada à ação penal.
Após os depoimentos dos réus, que poderão se estender por toda a semana que vem, Moraes abrirá um prazo para apresentação das alegações finais, última manifestação das partes no processo. Até lá, as defesas tentarão juntar mais provas que possam inocentar os réus. Advogados de Bolsonaro e de outros réus já se queixaram da dificuldade para acessar e localizar íntegras de conversas, imagens de câmeras e dados de geolocalização coletados pela Polícia Federal na investigação devido ao grande volume de dados e ao tempo escasso para analisá-los.
Após as alegações finais, será marcado o julgamento final do processo, onde os ministros da Primeira Turma darão votos pela condenação, absolvição e definição de eventuais penas.
No Supremo Tribunal Federal (STF), há interesse e pressão, por parte dos ministros mais politizados, por uma condenação ainda neste ano e até mesmo pela prisão dos condenados para cumprir a pena, que pode alcançar 30 anos de reclusão.
Nos bastidores, a iminente aplicação de sanções a Moraes e outros ministros por parte dos Estados Unidos – em razão de decisões que promoveram censura nas redes sociais, em alguns casos afetando o direito de livre expressão de cidadãos americanos e residentes, além das operações de empresas de tecnologia lá sediadas – levou parte da Corte a dobrar a aposta, não apenas endurecendo a persecução penal de Bolsonaro.
Nas últimas semanas, o STF abriu duas novas frentes: um inquérito contra Eduardo Bolsonaro, que faz campanha aberta nos EUA pela punição de Moraes e o agendamento para quarta-feira (4) da retomada do julgamento do Marco Civil da Internet.
A maioria dos ministros quer forçar as redes a remover de imediato, sob pena de duras multas e até suspensão, conteúdo considerado “antidemocrático” – na prática, críticas, memes e ilações que afetem a imagem do tribunal e de seus ministros e que inundam as redes. A narrativa do golpe é tida como fundamental, entre os ministros, para legitimar as ações, seja contra a direita ligada a Bolsonaro, seja contra as “big techs”.
Advogados que atuam no caso têm se queixado, dentro do processo e em conversas reservadas, da pressa imposta ao processo por Alexandre de Moraes, e pelo atropelo de garantias que o próprio tribunal estabeleceu, nos últimos anos, em favor da ampla defesa em processos penais.
Várias nulidades apontadas no inquérito do golpe e no processo foram rechaçadas de forma quase unânime e automática nos julgamentos da Primeira Turma, composta também pelos ministros Flávio Dino, Cristiano Zanin, Cármen Lúcia e Luiz Fux – só o último fez ressalvas à condução do caso, mas de forma inócua.